CONTRACORRENTE | Os Extremos Tocam-se?

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SIM

 

Na política, um partido encontra-se algures no eixo esquerda-direita. De modo geral, a direita política defende autoridade, hierarquia, ordem, dever, tradição, religião e nacionalismo; baseia-se no passado e exige responsabilidade individual. Do outro lado, a esquerda luta por liberdade, equidade, fraternidade, progresso e internacionalismo; foca-se no futuro e defende a liberdade individual.

Após os crimes hediondos contra a humanidade na 2ª Grande Guerra, os regimes de extrema-direita são apontados como o pior exemplo da espécie humana. Além disso, os partidos de extrema-direita que sobreviveram ou nasceram desde então são comuns e bastante vocais, disseminando uma retórica baseada em xenofobia.

Os partidos de extrema-esquerda, por sua vez, são mais aceites pela população em geral no mundo ocidental, porque a sua retórica defende os direitos do povo, os 99%, que são esquecidos pela classe governativa.

Porém, em ciência política, há uma teoria que defende que os 2 extremos esquerda-direita estão mais próximos um do outro do que estão do centro. Assim, o espectro político não é um eixo, mas sim uma ferradura. 

Os extremos, pela sua própria natureza, são aceites apenas por uma minoria da população e a sua implementação implica obrigatoriamente autoritarismo. Porém, o autoritarismo que permite a aplicação de políticas extremas permite também abuso de poder sobre a população, que se manifesta de maneiras semelhantes quer em regimes de direita e esquerda.

Os governos de extrema-esquerda são na sua maioria governos autoritários, que têm grande oposição, e recorrem a violência para chegarem e manterem o seu poder. A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e República Popular da China, os regimes comunistas mais extensos, têm uma história sangrenta que se prolongou pelo século XX, e que atualmente ainda tem repercussões extensas não só nos países que governaram, como nas nações vizinhas.

Além das mortes diretamente causadas por supressões, alguns historiadores culpam alguns regimes pelas crises de fome que ocorreram durante a sua governação. Destacam-se a grande fome Chinesa (1959-1961), com mais de 15 milhões de mortes (1); a fome na Coreia da Norte (1994-1998) (2); e a fome na União Soviética (1932-1933), com cerca de 7 milhões de mortes (3). Esta última vitimou maioritariamente ucranianos (3 milhões) (4), e foi reconhecida em 2006 como genocídio (Holodomor) (5).

Por último, a situação atual que se passa na China com a etnia Uigur (6,7) é francamente arrepiante. Apesar de ser em menor escala em comparação com o Holocausto, é assombroso ver que algo que devia ter ficado para trás na História está a ser repetido. Durante a 2ª Guerra, o próprio povo alemão não sabia tudo o que se passava nos campos de concentração, e o que sabemos atualmente deve-se à vitória dos Aliados. Para os Uigures não haverá 27 de janeiro.

Na prática, regimes que seguem ideologias extremistas resultam sempre em morte e sofrimento. Numa sociedade humana que se quer justa e livre não há lugar para governos com ideologias extremas. 


Autora: Ana Santos

Edição de Imagem: Felipe Bezerra

NÃO

A extrema-esquerda pode ser definida como uma ideologia anticapitalista de índole revolucionária com a pretensão de estabelecer o socialismo ou comunismo. Em Portugal, são erradamente considerados de extrema-esquerda partidos como o PCP ou BE, ignorando o quão bem estão integrados na democracia burguesa e cujas práticas e objetivos não vão além da social-democracia.

Muitos tentam comparar o socialismo e o fascismo, afirmando que os extremos políticos se tocam. Este sentimento é mais prevalente no centro e na direita política e é reflexo da hegemonia cultural anticomunista, a qual tem razões históricas e geopolíticas de origem complexa para este texto que se pretende breve. 

Mas será que aqueles que ousam esta comparação não são mais próximos da extrema-direita do que aquilo que pensam? Estes “centristas iluminados” ou até autoproclamados liberais e os seus regimes estão historicamente ligados ao apoio a ditaduras. Alguns exemplos disso são o apoio de Margaret Thatcher (ex-primeira-ministra britânica pelo partido de centro-direita Partido Conservador) a Augusto Pinochet (ditador chileno) (1), o apoio de Friedrich Hayek (economista liberal) a António de Oliveira Salazar (2) e ao regime de Pinochet, (2,3) a apologia do fascismo feita por Ludwig von Mises (economista liberal) (4) e o facto de ter sido membro do governo fascista de Engelbert Dollfuss (ditador austríaco), (5) a aliança entre o Partido Liberal Italiano (partido de centro-direita) e o Partido Nacional Fascista de Benito Mussolini (ditador italiano) (6) ou os elogios de Milton Friedman (Nobel da economia liberal) a Pinochet (3).

Em Portugal temos o exemplo do PSD, de centro-direita, não ter problemas em aliar-se ao partido de extrema-direita Chega. Miguel Albuquerque, presidente do Governo Regional madeirense e líder do PSD/Madeira defendeu mesmo uma aproximação do PSD ao Chega, com o objetivo de derrotar a esquerda (7). Outro exemplo foi o acordo entre o PSD e o Chega para ser viabilizado o governo dos Açores (8).

As razões que levam a esta aliança histórica entre os “centrismos” e “direitas moderadas” e a extrema-direita passam pelos interesses de classe burgueses na busca da manutenção do seu papel na sociedade contra as ameaças (leia-se, reclamar direitos para os trabalhadores) que a esquerda faz. Preferem proteger ditaduras, principalmente em alturas de contestação social decorrentes da exacerbação das contradições do capitalismo.

Qualquer defesa de proximidade entre a extrema-esquerda e a extrema-direita é iliteracia política, histórica e filosófica. A denominada extrema-esquerda está ligada à luta pelo fim do colonialismo, pelos direitos das minorias raciais e pelos direitos das pessoas LGBTQI+. Isto está em oposição com a extrema-direita que nestes assuntos toca, outra vez, muito do centro e da “direita moderada”. A título de exemplo, temos Nelson Mandela (o mais poderoso símbolo da luta contra o regime segregacionista do apartheid) que pertenceu ao comité central do Partido Comunista Sul-Africano (9) e nomeou até Joe Slovo (marxista-leninista sul-africano) para Ministro da Habitação do seu governo (10). Ou até Martin Luther King Jr. (reconhecido mundialmente pela luta contra a segregação racial nos EUA) que era anticapitalista (um extremista de esquerda para alguns) (11) e chegou mesmo a escrever estar desapontado com os “brancos moderados” por estes preferirem a “ordem” à justiça (12).

Vamos deixar de comparar as pretensões ideológicas de Saramago (13) e Einstein (14) com as de Ventura e Hitler?

Autor: José Vicente Castro

Referências:

NÃO:

  1. Thatcher stands by Pinochet. disponível em http://news.bbc.co.uk/2/hi/uk_news/304516.stm

  2. A União Europeia, as políticas sociais, e os fundamentos: de Hayek para Salazar, até aos liberais autoritários. disponível em
    https://www.esquerda.net/dossier/uniao-europeia-politicas-sociais-e-os-fundamentos-de-hayek-para-salazar-ate-aos-liberais

  3. Neoliberalism in Chile and the cost of human life. disponível em
    https://moderndiplomacy.eu/2021/02/19/neoliberalism-in-chile-and-the-cost-of-human-life/

  4. Liberalism: In the Classical Tradition. disponível em
    https://mises.org/library/liberalism-classical-tradition/html/p/29

  5. Meaning of the Mises Papers, The. disponível em https://mises.org/library/meaning-mises-papers

  6. Italian Fascism, 1915–1945 disponível em
    https://srisa.org/rw_common/plugins/stacks/armadillo/media/PhilipMorganItalianFascism19151945SecondEditionTheMakingoftheTwentiethCentury2004.pdf

  7. Miguel Albuquerque defende aproximação do PSD ao Chega. disponível em
    https://rr.sapo.pt/2020/08/06/politica/miguel-albuquerque-defende-aproximacao-do-psd-ao-chega-e-fundamental-que-o-centro-direita-se-junte-para-derrotar-a-esquerda/noticia/202629/

  8. Chega anuncia acordo com o PSD nos Açores. disponível em
    https://observador.pt/2020/11/06/chega-anuncia-acordo-com-o-psd-nos-acores/

  9. SACP statement on the passing away of Madiba. disponível em
    https://web.archive.org/web/20160303223354/http://www.sacp.org.za/main.php?ID=4151%20

  10. Funeral de Joe Slovo. disponível em https://arquivos.rtp.pt/conteudos/funeral-de-joe-slovo/

  11. The 11 Most Anti-Capitalist Quotes from Martin Luther King Jr. disponível em
    https://www.commondreams.org/views/2019/01/21/11-most-anti-capitalist-quotes-martin-luther-king-jr

  12. Martin Luther King, Jr. Letter from a Birmingham jail. disponível em
    https://www.africa.upenn.edu/Articles_Gen/Letter_Birmingham.html

  13. "Soy un comunista libertario". disponível em
    https://elpais.com/diario/2004/04/24/babelia/1082763550_850215.html

  14. Einstein, Albert. Why Socialism? disponível em http://monthlyreview.org/2009/05/01/why-socialism/

SIM:

  1. Smil, V. (1999). China's great famine: 40 years later. BMJ, 319(7225), 1619-1621. doi:10.1136/bmj.319.7225.161

  2. Noland, M. (2004). Famine and reform in North Korea. Asian Economic Papers, 3(2), 1-40. doi:10.1162/1535351044193411

  3. R.W. Davies and S.G. Wheatcroft, The Industrialisation of Soviet Russia, volume 5. The Years of Hunger: Soviet Agriculture, 1931-1933 (Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2004. Pp. xvii+555. 49 tabs.) 

  4. Applebaum, A. (2019, November 12). Holodomor. Encyclopedia Britannica. https://www.britannica.com/event/Holodomor.

  5. Worldwide recognition of the holodomor as genocide. (2021, February 09). De https://holodomormuseum.org.ua/en/recognition-of-holodomor-as-genocide-in-the-world/, consultado a 22/03/2021.

  6. Nebehay, S. (2018, August 10). U.N. says it has credible reports that China holds million Uighurs in secret camps. Retrieved March 22, 2021, from https://www.reuters.com/article/us-china-rights-un-idUSKBN1KV1SU

  7. Dutch parliament: China's treatment of Uighurs is genocide. (2021, February 25). Retrieved March 22, 2021, from https://www.reuters.com/article/us-netherlands-china-uighurs-idUSKBN2AP2CI