Sobre os ombros destes gigantes, o fim da violência sexual estará mais próximo

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5 de Outubro de 2018, o dia em que o  Comité de Oslo atribuiu o Prémio Nobel da Paz ao médico congolês Denis Mukwege e à activista iraquiana Nadia Murad «pelos seus esforços para acabar com o uso da violência sexual como arma de guerra e conflito armado», dado o seu papel crucial tanto na consciencialização como no combate a tais vis crimes.

Dados os rumores da possibilidade de se ter incluído uma terceira pessoa ligada ao movimento #MeToo nos premiados, e sobre o timing desta escolha, visto que Denis Mukwege é presença assídua na shortlist de nomeados ao Nobel, Berit Reiss-Andersen, Presidente do Comité, justificou a sua decisão com o assinalar dos dez anos da assinatura da Resolução 1820 do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Sim, é mesmo verdade, só há uma década é que se considerou pela primeira vez o uso da violência sexual como arma de guerra, um crime de guerra.

Desde 1901 (o primeiro ano que se entregou o Prémio Nobel da Paz), e após 106 premiações (em 19 ocasiões não foi entregue), foi a vigésima segunda vez que se laurearam duas pessoas, mas apenas a quinta vez em que essa dupla foi um homem e uma mulher. Mas quem são mesmo estas duas figuras? Comecemos pelas senhoras.

Nadia Murad é membro da minoria étnica Yazidi, uma minoria que habita o Norte do Iraque. Nadia tinha o sonho de ser cabeleireira. Vivia com a sua família na remota vila de Kocho quando, em Agosto de 2014, aos 21 anos, foi raptada pelo Estado Islâmico. Na altura, o Islamic State of Iraq and Syria (ISIS) tentava exterminar os «infiéis» Yazidis da face do Mundo. Grande parte das vilas no distrito de Sinjar foram massacradas, e os poucos que sobreviveram, crianças, mulheres, como Nadia, foram raptados e mantidos em cativeiro como escravos sexuais.

Nadia foi repetidamente violada por membros do grupo. Frequentemente ameaçada com a execução se não se convertesse a esta versão mais negra do Islão. Esta era a estratégia por parte destes soldados, no sentido de a transformar numa arma contra os seus, ou contra outras minorias religiosas. Estima-se que Nadia Murad foi uma das 3000 Yazidis que foi vítima de abusos por parte do Estado Islâmico, até aos dias de hoje.

Três meses depois do rapto, conseguiu fugir para um campo de refugiados, e daí foi para Estugarda, na Alemanha, num programa de asilo para Yazidis. Desde então, tem sido a porta-voz dos mesmos, e partilhado com o Mundo a sua dor, a dor de muitos. O relato de muitas noites de terror pode ser lido numa entrevista dada em 2016 ao Jornal Expresso. O seu trabalho como activista de alertar para o problema da violência sexual como arma de guerra tem sido fulcral. Em Setembro de 2016, apenas com 23 anos, foi nomeada “Embaixadora da boa vontade das Nações Unidas para a defesa da dignidade das vítimas de tráfico humano”. Vale a pena ler seu livro “Eu serei a última” e ver o documentário biográfico “On her shoulders” dirigido por Alexandria Bombach sobre a sua vida.  Foi galardoada com o Prémio Sakahrov em 2016.

Nadia Murad, a décima sete mulher na história a receber o Nobel da Paz. A mulher que «recusou-se a aceitar os códigos sociais que exigem às mulheres», que afirmou que «se receber o Nobel, recebê-lo-ei de coração partido». A mulher que teve a bravura, a coragem, de não ficar calada, pela vergonha, e que conseguiu contar a sua história e falar em nome de outras vítimas

Seguimos para Denis Mukwege. É importante realçar que o Dr. Denis Mukwege foi apenas o terceiro médico, na História, a ser galardoado com o Nobel da Paz, depois de John Boyd Orr (1949) e Albert Schweitzer (1952). Contudo, não é de só menos referir que algumas instituições como os Médicos Internacionais para a Prevenção da Guerra Nuclear (1985) e os Médicos Sem Fronteiras (1999) também foram laureadas. Voltemos à história deste médico ginecologista.

O Dr. Denis Mukwege passou largos anos da sua vida a ajudar mulheres que foram violadas em grupo no seu país, a República Democrática do Congo (RDC), um infeliz fenómeno recorrente desde o início da Segunda Guerra do mesmo. A RDC é um dos países mais perigosos no Mundo para se ser mulher, tendo sido apelidada pelas Nações Unidas de “capital da violação”. Estima-se que são violadas 48 mulheres por hora, desde 2011. No Hospital Panzi, fundado por Denis, mais de 50 mil mulheres vítimas de violência sexual foram tratadas desde 1999. Este, chegava a fazer 10 cirurgias por dia.

O Dr. Denis tem vindo a condenar e criticar, repetidamente, o seu governo, o governo Congolês, mas também o de outros Países pelo clima de impunidade que os violadores vivem e pela inércia no combate a estes crimes sexuais. Um dos seus princípios basilares é que «a justiça deve ser uma preocupação de todos, e não só de alguns». A sua resiliência tem sido admirável, pelo que Mukwege é considerado «o símbolo mais unificador, tanto nacional como internacionalmente, no combate à violência sexual na guerra e nos conflitos armados». Já foi galardoado com os prémios Olof Palme (2008), Sakharov (2014) e Calouste Gulbenkian (2015).

Os premiados do Nobel da Paz deste ano espelham firmemente os critérios expostos no testamento de Alfred Nobel - o Dr. Denis Mukwege e a ativista Nadia Murad colocaram em risco sua segurança pessoal de forma a combater corajosamente os crimes de guerra, procurando justiça para as vítimas dos mesmos; promovendo desta forma a fraternidade das Nações através da aplicação dos princípios do direito internacional.

Quem é forte com os fracos, acaba por ser fraco com os fortes, mas não eles. Mukwege e Murad ficarão na história não apenas pelo Prémio Nobel, mas pelo que fizeram, como agiram, dia após dia. Deram a todos nós um grande exemplo de humanismo e de bravura, travando duras batalhas contra os poderes instituídos, contra a ignorância opcional, enfim, contra o pior lado do ser humano. Desta forma, e tal como Brecht escrevia, “tornaram-se imprescindíveis, através da sua incessante luta, e isso é o que os fará imortais”…

António Lopez

Ilustração por Valentim Rodrigues

Referências bibliográficas:

https://www.nobelpeaceprize.org/The-Nobel-Peace-Prize-2018 (consultado dia 15/10/2018)

https://observador.pt/seccao/cultura/premio-nobel-cultura/nobel-da-paz/ (consultado dia 18/10/2018)

http://visao.sapo.pt/actualidade/mundo/2018-10-05-Nobel-da-Paz-para-medico-e-ativista-pelos-seus-esforcos-para-acabar-com-a-violencia-sexual-nos-conflitos-armados (consultado dia 18/10/2018)

https://observador.pt/2018/10/05/se-receber-o-nobel-recebe-lo-ei-com-o-coracao-partido-nadia-murad-a-jovem-yazidi-que-partilhou-a-sua-dor-com-o-mundo/ (consultado dia 18/10/2018)

https://observador.pt/2018/10/08/nobel-da-paz-nadia-murad-insta-comunidade-internacional-a-juntar-se-a-sua-luta/ (consultado dia 18/10/2018)

https://www.nytimes.com/2018/10/18/movies/on-her-shoulders-review.html (consultado dia 18/10/2018)

https://observador.pt/2018/10/05/este-nao-e-um-problema-so-das-mulheres-e-um-problema-da-humanidade-denis-mukwege-o-medico-que-sara-os-corpos-e-tenta-aliviar-as-almas/ (consultado dia 20/10/2018)