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FICHA TÉCNICA

Enciclopédia de Saúde Ambiental
uma iniciativa conjunta da AEFML e do ISAMB/FMUL

Coordenação: Ricardo R. Santos, José Rodrigues e Osvaldo Santos
Edição dos textos: Ricardo R. Santos e Osvaldo Santos
ProduçãoAEFML e ISAMB/FMUL

 

CAPÍTULO 10

DIETA MEDITERRÂNICA E ARTRITE REUMATOIDE

EDUARDO DOURADO*, MARGARIDA FERRO**, CATARINA SOUSA GUERREIRO** E JOÃO EURICO FONSECA*# 

A artrite reumatoide (AR) é uma doença crónica imunomediada que se caracteriza pelo inchaço, dor e destruição das articulações. Associada frequentemente a uma resposta inflamatória sistémica, a AR é causa de elevada morbimortalidade quando não controlada rápida e adequadamente. A mortalidade associa-se principalmente a eventos cardiovasculares (CV), de uma forma que é independente dos tradicionais fatores de risco CV. Na verdade, quanto maior a atividade da doença, maior é a mortalidade CV.

Ao longo das últimas duas décadas, a otimização do uso dos fármacos antirreumáticos modificadores de doença (DMARD), e o advento de novas terapêuticas, biológicas e de pequenas moléculas, têm alterado dramaticamente o curso natural da doença, com melhorias muito significativas da mortalidade e da qualidade de vida dos doentes. Ainda assim, uma proporção substancial dos doentes com AR não atinge a remissão usando apenas terapêutica farmacológica. Consequentemente, diversas terapêuticas adjuvantes, não farmacológicas, têm sido exploradas, incluindo a educação para a saúde, terapias físicas, ortóteses, dispositivos de auxílio, balneoterapia e intervenções dietéticas.

O impacto potencial de uma intervenção dietética em doentes com AR é imenso. Mesmo que não consideremos a repercussão da dieta na atividade inflamatória da AR, a intervenção terapêutica ainda terá um impacto muito significativo tanto no risco CV como na prevalência de obesidade, um conhecido fator de risco para má qualidade de vida, comorbilidades e resistência ao tratamento em doentes com AR.

A dieta mediterrânica, conjuntamente com outros fatores genéticos e ambientais (sobretudo o tabagismo, mas também a exposição prévia a alguns agentes infeciosos ou a poluição ambiental), podem explicar a menor incidência da AR no Sul da Europa quando comparada com a prevalência em países do Norte da Europa e da América. A dieta mediterrânica constitui um conjunto de conhecimentos, capacidades, práticas e tradições, incluindo colheitas, pesca, conservação, preparação e, particularmente, consumo de alimentos. É caracterizada por um modelo nutricional que consiste maioritariamente na utilização de azeite, cereais, frutas e legumes, uma quantidade moderada de peixe, lacticínios e carne, e muitos condimentos e especiarias, acompanhados de vinho ou infusões.

Vários mecanismos têm sido propostos para explicar a influência da dieta mediterrânica na prevalência e atividade da AR, incluindo o seu potencial antioxidante, perfil lipídico tipicamente anti-inflamatório e a sua capacidade de modular a microbiota do tubo digestivo humano. Mais recentemente, o desenvolvimento de uma nova área de conhecimento, chamada fármaco-micro-biómica, tem revelado o papel da microbiota na farmacocinética e resposta individual de cada doente aos fármacos imunossupressores, revelando mais uma potencial aplicação da modulação da microbiota, neste caso ao tratamento de doentes com AR.

Fatores ambientais, mais que os genéticos, influenciam as alterações da microbiota. A dieta é um desses fatores ambientais, sendo considerado um modulador-chave da microbiota. Como tal, a modulação da microbiota através de intervenções alimentares tem sido cada vez mais utilizada na gestão de doenças crónicas, incluindo a AR.

O efeito de vários nutrientes associados à dieta mediterrânica na patogénese e na atividade da AR foi extensivamente estudado. O rácio equilibrado de ácidos gordos polinsaturados n-3 e n-6 (1:5) define um perfil tipicamente anti-inflamatório, por interferir com a síntese de mediadores inflamatórios como as prostaglandinas e os leucotrienos. Os polifenóis melhoram a função de barreira da mucosa intestinal e modulam a microbiota, aumentado a produção de ácidos gordos de cadeia curta (AGCC), que, e em especial o butirato, tem uma ação anti-inflamatória tanto local, a nível intestinal, como a nível sistémico. O alto teor em fibras também é característico da dieta mediterrânica, e também tem um efeito benéfico na flora intestinal que promove um aumento da produção de AGCC, tal como os polifenóis. Na verdade, há descrições de efeitos sinérgicos entre vários elementos da dieta mediterrânica. Os dados que suportam estes efeitos benéficos estão bem consubstanciados. Tendo em conta que todos estes nutrientes são elementos-chave da dieta mediterrânica, foi proposto que a esta poderá ser utilizada como terapêutica adjuvante na AR. Desencorajam-se as intervenções nutricionais altamente focadas em nutrientes individuais, sendo a tendência atual estudar dietas como um todo, que incluam nutrientes e alimentos potencialmente benéficos, tornando mais fácil a sua integração no dia-a-dia do indivíduo. Neste sentido, foram desenvolvidos dois ensaios clínicos que estudaram o efeito da dieta mediterrânica na AR. Os resultados destes estudos são promissores, mas ainda insuficientes para que seja afirmado, com confiança, o papel das intervenções nutricionais na gestão de doentes com AR. Estas estratégias terão que ser mais amplamente estudadas, sendo expectável que com maiores amostras e estudos mais bem desenhados os resultados sejam mais robustos. A expectativa é que as intervenções nutricionais possam passar a fazer parte de um armamentário terapêutico que vai para além das terapêuticas clássicas e que se quer tão vasto quanto as expectativas dos doentes com AR.

 

* Serviço de Reumatologia e Doenças Ósseas Metabólicas do Hospital de Santa Maria, Centro Hospitalar Lisboa Norte; ** Laboratório de Nutrição da Faculdade de Medicina, Universidade de Lisboa; # Faculdade de Medicina, Universidade de Lisboa


CAPÍTULO 9

PIERRE BOURDIEU E SAÚDE AMBIENTAL: UM DUETO IMPROVÁVEL?

PEDRO CANDEIAS* E VIOLETA ALARCÃO#

A ligação entre a Sociologia de Pierre Bourdieu e a Saúde Ambiental pode parecer improvável à primeira vista. Contudo, como se discutirá nas próximas linhas, tanto é adequada como possibilita diversas aplicações. Pretende-se com este breve texto apresentar a relação entre os diversos capitais1 propostos na teoria deste autor e comportamentos e estilos de vida que têm impacto na saúde humana.

Em primeiro lugar, parte-se da visão de que o estudo em Saúde Ambiental assenta no impacto que diversos ambientes podem ter na saúde humana, sendo que os fatores sociais constituem um desses ambientes, entre outros como o ecológico, o psicossocial, o digital, o físico, etc. (Santos et al., 2019)2.

 Em segundo lugar, são apresentados os fatores sociais selecionados. De entre a vasta obra de Pierre Bourdieu (1930-2002), publicada especialmente entre os anos 1970 e 1980, foi escolhida para esta reflexão a sua teoria sobre as formas de capital (Bourdieu, 1986)3. O autor propõe a existência de quatro tipos de capital:

i) O capital económico, o mais visível, é consubstanciado em dinheiro e propriedades.

ii) O capital cultural, que se subdivide em três formas: objetivado, incorporado e institucionalizado. A primeira, objetivada, corresponde a diplomas e a indicadores com elevada capacidade de operacionalização, como o número de livros, ou a quantidade de obras de arte que uma pessoa possui em casa. A forma incorporada diz respeito a competências e disposições sociais que orientam a ação. A terceira forma de capital cultural é a institucionalizada e diz respeito às qualificações escolares e académicas, que associam os indivíduos a determinada instituição em que obtiveram formação. A diferença em relação ao capital cultural objetivado é que, na forma institucionalizada, existe uma afiliação a determinada instituição que vale por si, a mais fácil de pensar serão as associadas a instituições de ensino superior.

iii)) O terceiro tipo de capital, o capital social, diz respeito às redes de conhecimentos e reconhecimento às quais se pode fazer parte. Por outras palavras, as pessoas que se conhecem, e cujos conhecimentos podem ser utilizados em proveito próprio.

iv) Por fim, o capital simbólico, corresponde ao prestígio associado a qualquer um dos capitais anteriores.

Os quatro tipos de capital são convertíveis entre si, sendo o capital económico o que possui maior convertibilidade. Veja-se dois exemplos para ilustrar essa convertibilidade. Com dinheiro (capital económico) é possível aceder a uma formação de nível superior numa instituição prestigiada (capital cultural e simbólico). Um segundo exemplo, uma rede diversificada de contactos pessoais (capital social) pode dar acesso a um emprego bem remunerado (capital económico)4. Os capitais são recursos que permitem aos agentes reproduzirem ou melhorarem a sua posição na estrutura social. A distribuição desigual destes recursos e a sua posterior reprodução ou conversão (uns nos outros) acentua as desigualdades sociais.

 Exposta a teoria dos capitais, importa, em terceiro lugar, perceber como se pode dar a ligação desta teoria à Saúde Ambiental. São duas as abordagens com possíveis interligações entre si.

 A primeira é a ligação entre a posse de capitais e os estilos de vida adotados a nível individual, sejam saudáveis ou de risco. Um modo de equacionar esta relação é pensar nas aplicações do capital económico. Na reflexão de Veenstra e Abel (2019), embora o capital económico seja aquele com maior convertibilidade, deve ser, sempre que possível, analisado em conjugação com os restantes capitais. Os autores dão como exemplo a possibilidade de, com elevados capitais económicos, haver maior facilidade em comprar uma casa num bairro com baixos níveis de criminalidade violenta, com escolas que promovam ambientes saudáveis e com acesso a lojas de comida saudável. Ou seja, com base no capital económico, acede-se a capital social, capital simbólico e, o mais importante para o caso, proximidade a estilos de vida saudáveis. Com um background teórico semelhante, mas com aplicação empírica, o estudo de Kandt (2018) demonstrou que, no Reino Unido, existia uma relação entre rendimentos (capital económico), participação cívica e social (capital social) e alguns estilos de vida (consumo de álcool e/ou tabaco, prática de alimentação saudável e atividade física através de desporto e caminhada). O que leva a concluir que os capitais individuais podem ser um dos muitos fatores que condicionam a saúde. O que segue uma abordagem semelhante a algumas correntes da Epidemiologia Social, como a de Marmot (2004), que tem vindo a demonstrar que a posição dos indivíduos na estrutura socioeconómica é determinante para a saúde individual. O que ocorre porque grande parte das doenças e dos fatores de risco estão associadas à pobreza económica.

 Um segundo tema, mais estudado e mais específico do que os estilos de vida, diz respeito ao comportamento alimentar. Esta abordagem tinha sido proposta pelo próprio Bourdieu aquando a sua obra A distinção (1984). Bourdieu abordava, aí, as práticas alimentares, segmentando-as de acordo com a posição dos sujeitos na estrutura das classes sociais de França nos anos 1960. As práticas alimentares eram abordadas numa dicotomia luxo/liberdade, que opunha, no primeiro polo, tipos de comida que implicam algum capital para os apreciar (luxo), vis-à-vis as preferências das classes operárias por comidas mais pesadas e aconchegantes (fulfilling) devido à natureza das suas tarefas laborais (liberdade) (Bourdieu, 1984). Esta é provavelmente a ligação que foi mais desenvolvida, tendo sido identificadas duas revisões de literatura recentes sobre a aplicação da teoria de Bourdieu à alimentação (Kamphuis et al., 2015; Sato et al., 2016).

 Embora a abordagem de Bourdieu enfatizasse a ligação da posição dos indivíduos na estrutura das classes sociais com as práticas alimentares, a ligação que posteriormente foi mais desenvolvida ligou a alimentação à teoria dos capitais. É especialmente relevante a ligação entre o capital cultural e as práticas alimentares (Kamphuis et al., 2015). E, tal como o capital cultural, o capital associado às práticas alimentares assume diferentes formas: objetivado, quando diz respeito à posse de equipamentos de culinária; incorporado, quando diz respeito a técnicas culinárias, técnicas de compra de alimentos, técnicas de identificação de alimentos ou conhecimentos em nutrição. É possível desenvolver o raciocínio dos autores e adaptar os restantes capitais às práticas alimentares (pese embora nem todas tenham ligação à saúde); o capital cultural institucionalizado pode estar presente, por exemplo, num Chef formado numa reconhecida escola de cozinha, ou numa formação em nutrição de determinada escola. Por fim, o capital social pode manifestar-se em contactos sociais que permitem ter acesso a determinados produtos alimentares, por exemplo, o contacto pessoal de um agricultor com produtos de qualidade, mas com reduzida distribuição. 

 As desigualdades em saúde podem assumir diversas camadas, interseções ou diversas perspetivas. Por vezes, essas desigualdades são identificadas sem que se procure uma explicação teórica para a sua interpretação. Com esta breve abordagem procurou-se mostrar como é que desigualdades económicas, culturais e de contactos sociais se podem refletir em práticas com implicações na saúde humana. Este conhecimento pode ser de particular interesse para a identificação de políticas para a igualdade, promotoras de ambientes saudáveis, de saúde humana e do bem-estar das populações.

 * Sociólogo, Investigador do Laboratório de Comportamentos de Saúde Ambiental (EnviHeB Lab) do Instituto de Saúde Ambiental da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. pedromecandeias@gmail.com; # Socióloga, Investigadora do Laboratório de Comportamentos de Saúde Ambiental (EnviHeB Lab) do Instituto de Saúde Ambiental da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Centro de Investigação e Estudos de Sociologia, Lisboa, Portugal. Violeta_Sabina_Alarcao@iscte-iul.pt

 

Notas

[1] Como se verá, Bourdieu amplia a conceção marxista de capital, entendendo por este termo não apenas inclui a acumulação de bens e riquezas económicas, mas os recursos ou poderes que se manifestam numa atividade social.

[2] Importa referir que nem todas as definições de saúde ambiental são tão abrangentes e consideram os fatores de ordem social.

[3] Outros fatores sociais igualmente interessantes para estudar o contributo de Bourdieu para a Saúde Ambiental, mas cuja apresentação foge ao âmbito desta reflexão, seriam por exemplo os fatores de género e étnico-raciais explicados à luz da lógica da dominação (Bourdieu, 2013) e do poder simbólico (Bourdieu, 1994).

[4] Veja-se sobre este assunto, a tese em sociologia económica de Granovetter (1974), que mantém a atualidade, em que foi verificado que, nos Estados Unidos, empregos qualificados em empresas tendiam a ser mais frequentemente obtidos através de contatos pessoais informais do que através de recrutamentos formais.

 

Referências bibliográficas

Bourdieu, P. (1984). Distinction. A social critique of the judgment of taste: Harvard University Press.

Bourdieu, P. (1986). The Forms of Capital. In J. E. Richardson (Ed.), Handbook of Theory of Research for the Sociology of Education (pp. 241-258). Westport: Greenword Press.

Bourdieu, P. (1994). O Poder Simbólico. Lisboa: Difel.

Bourdieu, P. (2013). A Dominação Masculina. Lisboa: Relógio D'Água.

Granovetter, M. (1974). Getting a Job: A Study of Contacts and Careers. Chicago: The University of Chicago Press.

Kamphuis, C. B. M., Jansen, T., Mackenbach, J. P., & Lenthe, F. J. v. (2015). Bourdieu’s Cultural Capital in Relation to Food Choices: A Systematic Review of Cultural Capital Indicators and an Empirical Proof of Concept. Plos One, 10(8).

Kandt, J. (2018). Social practice, plural lifestyles and health inequalities in the United Kingdom. Sociology of Health & Illness, 1–18.

Marmot, M. (2004). The Status Syndrome: How social standing affects our health and longevity. New York: Times Books.

Santos, O., Virgolino, A., Santos, R., Costa, J., Rodrigues, A., & Vaz-Carneiro, A. (2019). Environmental Health: An overview on the evolution of the concept and its definitions. In J. Nriagu (Ed.), Encyclopedia of Environmental Health, Second Edition (pp. 466–474): Elsevier.

Sato, P. M., Gittelsohn, J., Unsain, R. F., Roble, O. J., & Scagliusi, F. B. (2016). The use of Pierre Bourdieu's distinction concepts in scientific articles studying food and eating: A narrative review. Appetite, 96, 174-186.

Veenstra, G., & Abel, T. (2019). Capital interplays and social inequalities in health. Scandinavian Journal of Public Health, 1–4.


CAPÍTULO 8

GERAÇÃO Z: REALIDADE DIGITAL

GABRIELA SOGORB* E CARMO VIZOSO#

Para quem pertence à Geração Z, a ideia de que os seus pais não cresceram com um smartphone na mão parece ser absurda. Os Z, atualmente com idades compreendidas entre os 10 e os 25 anos, representam a primeira geração nativa digital. Quando nasceram, já existiam computadores e telemóveis, estando habituados a ter informação à distância de um clique, permitindo-lhes uma autonomia e uma conectividade nunca antes vista.

 Os Baby Boomers (1940-1959), por exemplo, viveram num período pós-guerra. Foram, pois, influenciados por uma cultura revolucionária, adotando uma postura mais coletivista. Por oposição, a geração seguinte, a Geração X (1960-1979), adotou uma filosofia mais competitiva e individualista, em parte devido ao auge do capitalismo. Como a Geração Y (1980-1994), também conhecida como Millenials, nasceu no meio próspero proporcionado pela geração anterior, afastou-se do individualismo e seguiu em direção ao globalismo. Acompanharam a transição do analógico para o digital; no entanto, nem sempre tiveram o mundo na mão, sendo mais difícil saciar a sua curiosidade. Já os Z, por terem sempre uma vasta e aparentemente infindável quantidade de informação à sua disposição tornaram-se mais pragmáticos e analíticos do que as gerações anteriores.

 Um fenómeno importante que a Geração Z acompanhou foi a emergência das redes sociais virtuais. «Rede social virtual» é o termo aplicado para descrever um variado leque de plataformas web-based, aplicações e tecnologias que permite que as pessoas interajam umas com as outras on-line, isto é, em tempo real e de uma forma imediata, independentemente da distância. As redes sociais virtuais estão já enraizadas na nossa sociedade, pelo que é expectável que a sua utilização tenha repercussões, positivas, mas também negativas, a diferentes níveis, dependendo do tipo de utilização.

 Para distinguir os impactos que podem decorrer da utilização de redes sociais virtuais, vamos tomar como exemplo o Instagram. Trata-se de uma rede social virtual photobased, unicamente dedicada à partilha de fotografias e vídeos pelos seus utilizadores. É usada, todos os dias, por cerca de 500 milhões de pessoas em todo o mundo. Sabe-se que o grupo mais exposto a esta rede são os adultos com idades compreendidas entre os 25 e os 34 anos, representando 35% dos utilizadores. Os jovens adultos dos 18 aos 24 anos equivalem a 29% do total de utilizadores e o terceiro grupo etário mais presente no Instagram (16,6%) são os adultos entre os 35 e 44 anos. Os Estados Unidos da América lideram as audiências, com cerca de 120 milhões de utilizadores diários, seguido da Índia e do Brasil com 88 e 82 milhões, respetivamente (Clement, 2020). Em Portugal, de acordo com o estudo “Os Portugueses e as Redes Sociais em 2019”, realizado pela Marktest, o Instagram agrega 67,9% dos utilizadores de redes sociais virtuais, tendo crescido mais de dezanove vezes em relação a 2013. Aliás, o Instagram é a rede social virtual que os jovens portugueses entre os 15 e os 24 anos utilizam com mais frequência (53,1%).

 A interação social e a oportunidade de partilhar e eternizar momentos são dois dos principais motivos que fazem com que o Instagram seja uma rede com tantos utilizadores. As fotografias e os vídeos partilhados acabam por ser uma espécie de diário público de cada utilizador. Um outro aspeto relevante é o facto de, no Instagram, por oposição a outras redes como o Facebook ou o Twitter, se dar mais importância à imagem do que ao texto, não sendo necessário que aquelas sejam acompanhadas de legenda. Afinal de contas, «uma imagem vale mais do que mil palavras» e uma fotografia ou um vídeo permite que os utilizadores se expressem de maneiras que, por vezes, um texto o não permite (Lee et al. 2015).

 Como rede social virtual que é, o Instagram pode ser usado quer para entretenimento, quer como plataforma de negócio ou até mesmo como meio de educação da população. A título de exemplo, o movimento #NormalizeBreastfeeding tem como objetivo principal normalizar e promover o ato da amamentação, justamente através da partilha de experiências e conteúdos. Ao procurar as publicações associadas ao hashtag (#) em causa, os utilizadores podem encontrar alguns posts educacionais, apesar de a maioria estar relacionada com a venda de produtos para amamentação. O Instagram deu espaço para que fosse criada uma plataforma em que mães partilham experiências, colocam e esclarecem dúvidas, constituindo-se assim uma rede informal de apoio em que mães se ajudam umas às outras (Marcon et al., 2019).

 Por sua vez, o caso da epidemia de Zika ilustra bem como as plataformas de social media podem ser usadas como um veículo para divulgar informação sobre diversos assuntos. Aquando do surto de Zika, em 2015, foram partilhados inúmeros posts com #Zika que continham mensagens relacionadas com saúde pública. Na altura concluiu-se que a utilização das redes sociais virtuais para este tipo de partilhas tem várias vantagens, nomeadamente o facto de chegar a muitos utilizadores e a possibilidade de dirigir a informação para determinados grupos-alvo. No entanto, é um método de divulgação «sem filtro», o que permite que se partilhe informação errada ou descontextualizada. Ao serem estudados os posts associados ao #Zika observou-se que conteúdos com informação errada, vulgo fake news, tinham maior probabilidade de serem partilhados, comparativamente a posts com informações verdadeiras e relevantes (Seltzer et al., 2017).

 Apesar de o uso desta plataforma apresentar todas as vantagens acima referidas, também pode ter um impacto negativo, nomeadamente sobre a saúde mental dos seus utilizadores, uma vez que a constante exposição a variados conteúdos pode resultar em feedback ou comparações negativas, transformando esta aplicação numa fonte de stress e ansiedade. Que mecanismos estão por trás destes impactos negativos do Instragram, em termos de saúde mental? Os utilizadores do Instagram tendem a partilhar apenas o lado positivo das suas vidas e, inevitavelmente, foi-se criando a ideia de que existem estilos de vida ideais, que devem ser atingidos a todo o custo. A busca incessante pela perfeição física e a pressão social para atingir determinados padrões de beleza tem impacto no bem-estar, nomeadamente psicológico, dos utilizadores desta rede. A interiorização de aparências ideais, e o consequente processo de comparação das mesmas, constituem fatores de vulnerabilidade para o desenvolvimento de insatisfação pessoal (Anixiadis et al., 2019). Para além disso, uma utilização desmedida desta rede pode também conduzir a uma obsessão pela aprovação dos pares e a uma exposição exagerada, levando à perda de privacidade. Ora, um aspeto essencial do Instagram são os gostos (likes), que acabam por influenciar o modo como a rede é utilizada. São vistos como um marcador de popularidade, de tal maneira que existem estratégias para aumentar o número de gostos por partilha, como, por exemplo, o uso de filtros numa fotografia. Alguns estudos identificaram a importância que os adolescentes dão ao número de gostos que as suas partilhas têm, tendo os autores concluído que esse valor é visto como um feedback direto da sua beleza. Quer isto dizer que um número baixo pode acabar por ter efeitos negativos na autoimagem e na autoestima (Hui et al., 2016).

 Coloca-se então a seguinte pergunta: se este tipo de redes sociais têm o potencial de serem uma fonte de entretenimento e até mesmo de veículo de transmissão e de conexão entre os seus utilizadores, como podemos proteger-nos dos seus potenciais efeitos negativos? O primeiro passo será, talvez, investir na educação dos utilizadores, garantindo que estes estejam familiarizados com o conceito de media literacy.

 Media literacy consiste na capacidade de pensamento crítico relativamente àquilo a que estamos expostos na Internet, através da compreensão de que, por um lado, as redes sociais virtuais não representam necessariamente a realidade e, por outro, que o conteúdo dos media tem a capacidade para influenciar atitudes e comportamentos. Este conhecimento é relevante para a educação e proteção de cada um e permite tornar a utilização da Internet mais segura.

 Um outro aspeto importante na regulação do impacto negativo das redes sociais virtuais é a gestão do tempo dedicado às mesmas. Sabemos que um tempo excessivo de exposição ao ecrã – e, em particular, a redes sociais virtuais – pode ser prejudicial e pode retirar tempo a outras atividades relevantes para o desenvolvimento da pessoa (e, muito em particular, enquanto adolescente).

 Vivemos numa sociedade em que os mundos on-line e off-line se fundiram. O objetivo das redes sociais virtuais é termos acesso a plataformas de entretenimento, comunicação e partilha que complementem, de alguma forma, as nossas redes sociais tradicionais. Devemos, por isso, potenciar os impactos positivos do seu uso na nossa saúde, tentando reduzir ao máximo quaisquer repercussões negativas.

 

* Estudante, licenciada em Ciências da Saúde; # Estudante, licenciada em Ciências da Saúde.

 

Referências bibliográficas

Anixiadis F, Wertheim EH, Rodgers R, Caruana B (2019). Effects of thin-ideal instagram images: The roles of appearance comparisons, internalization of the thin ideal and critical media processing. Body Image 31: 181–90. doi: 10.1016/j.bodyim.2019.10.005

Clement J (2020). Instagram – Statistics & Facts. Disponível em https://www.statista.com/topics/1882/instagram/ (consultado em 27 de Julho de 2020).

Hui T, Chua H, Chang L (2016). Follow me and like my beautiful selfies: Singapore teenage girls’ engagement in self-presentation and peer comparison on social media. Comput Human Behav 55: 190–7. doi: 10.1016/j.chb.2015.09.011

Lee E, Lee JA, Moon JH, Sung Y (2015). Pictures Speak Louder than Words: Motivations for Using Instagram. Cyberpsychology, Behav Soc Netw 18(9): 552–6. doi: 10.1089/cyber.2015.0157

Marcon AR, Bieber M, Azad MB (2019). Protecting, promoting, and supporting breastfeeding on Instagram. Matern Child Nutr. 15(1) e12658. doi: 10.1111/mcn.12658

Seltzer EK, Horst-Martz E, Lu M, Merchant RM (2017). Public sentiment and discourse about Zika virus on Instagram. Public Health 150: 170–5. doi: 10.1016/j.puhe.2017.07.015


CAPÍTULO 7

FILHOS DE UM CALOR MAIOR:O IMPACTO DO AQUECIMENTO GLOBAL NA SAÚDE REPRODUTIVA

MAFALDA NUNES* E PAULO NAVARRO-COSTA#

A combinação entre um planeta em aquecimento e uma população envelhecida representa um novo desafio à reprodução humana.

Junho de 2020 foi o mês mais quente jamais registado no nosso planeta. O ritmo acelerado de aquecimento global que se tem observado nos últimos 35 anos é um facto científico inequívoco, estando a origem deste fenómeno diretamente associada à atividade humana (IPCC, 2015). Sabendo-se que o aumento da temperatura média terrestre coloca em perigo o equilíbrio de todos os ecossistemas do planeta, torna-se absolutamente fundamental compreender de que forma as alterações climáticas podem afetar a nossa saúde.

Nessa perspetiva, a fertilidade e a saúde reprodutiva emergem como áreas-chave para a nossa sobrevivência num contexto ambiental cada vez mais desfavorável. Na verdade, quase metade da população mundial vive em países abaixo do limiar da substituição de gerações (ou seja, em que o número de nascimentos no país deixou de ser suficiente para manter o número total de indivíduos na população) (UN, 2017). Só em Portugal, as estimativas internacionais mais recentes sugerem que, no ano 2100, a nossa população poderá estar reduzida a menos de metade do seu atual número (Vollset et al., 2020).

A complexa relação entre o aquecimento global e a reprodução humana foi alvo de um recente estudo multidisciplinar que mobilizou vários institutos europeus e norte-americanos nas áreas do ambiente, sustentabilidade e economia (Barreca et al., 2019). Este estudo analisou o número diário de nascimentos nos Estados Unidos durante 20 anos (de 1969 a 1988), correlacionando-os com dados ambientais. Com base nesta amostra representativa da população, observou-se que a exposição a temperaturas acima dos 32ºC no final da gravidez resulta num encurtamento do período de gestação e, por conseguinte, numa antecipação do parto. Apesar de tal encurtamento ser relativamente pequeno (em média, uma redução de cerca de uma semana no período de gestação), é importante ter em consideração estudos anteriores que mostram um aumento da probabilidade de ocorrência de eventos perinatais adversos se as grávidas forem expostas a temperaturas elevadas. Com este novo estudo, o encurtamento na duração da gestação promovido pelo calor surge como uma das possíveis explicações para o impacto negativo de temperaturas elevadas na saúde do recém-nascido.

Mas de que forma poderá o calor antecipar o parto? As respostas ainda não são definitivas, mas há duas hipóteses a considerar. A primeira envolve a oxitocina: uma das hormonas-chave envolvidas na preparação do corpo da mulher para o parto. O aumento de temperatura pode levar a um aumento dos níveis de oxitocina na mulher grávida, o que por sua vez resultará num contexto mais favorável ao encurtamento da gestação. A segunda hipótese tem a ver com o aumento do stress cardiovascular em virtude das temperaturas elevadas. Vários estudos têm vindo a associar o aumento dos níveis de stress durante a gravidez a um maior risco de parto prematuro. Desta forma, o stress induzido pelo calor poderá resultar numa redução no tempo de gestação através de um efeito adverso no sistema cardiovascular da grávida.

A vertente socioeconómica revela-se igualmente um fator determinante a ter em conta na relação entre o calor e a reprodução humana. Atualmente, cerca de três mil milhões de pessoas no mundo inteiro estão em situação de vulnerabilidade perante o stress térmico causado por altas temperaturas (Mastrucci et al., 2019). Grande parte delas vive em regiões economicamente desfavorecidas, caso da África Subsaariana, do Sudeste Asiático e da América Latina, mas este problema também se faz sentir nas populações mais desprotegidas a viver em países ricos. Várias linhas de investigação têm vindo a sugerir que o uso racional do ar condicionado é uma arma eficaz contra os efeitos do calor excessivo na saúde humana. Contudo, aspetos económicos ditam desigualdades no acesso a este recurso. No caso específico do encurtamento do período de gestação, foi observado que o acesso ao ar condicionado era, por si só, capaz de mitigar uma parte substancial do impacto das temperaturas elevadas (Barreca et al., 2019). Esta simples observação ilustra a forma como fatores socioeconómicos podem influenciar não só a saúde do indivíduo, como também introduzir assimetrias passíveis de se perpetuarem entre gerações.

Será que as temperaturas elevadas também podem influenciar as fases iniciais da gravidez? A utilização de modelos animais tem sido indispensável para responder a esta pergunta. Os modelos animais são uma ferramenta crucial na investigação biomédica, e a utilização responsável e controlada dos mesmos tem permitido avanços fundamentais no combate a inúmeras doenças humanas. No contexto dos efeitos ambientais na função reprodutora, estudos com espécies bovinas têm-se revelado particularmente úteis em virtude do maior porte destes animais relativamente aos pequenos vertebrados tipicamente utilizados em investigação biomédica. Estes estudos mostraram que o aumento da temperatura corporal materna resulta, entre outros efeitos, na desregulação das funções ovárica e uterina. Observou-se que tal desregulação estava, por sua vez, associada a um decréscimo nas taxas de fertilização e de desenvolvimento embrionário (De Rensis et al., 2017). A existência de um efeito semelhante em humanos é uma hipótese a considerar, particularmente em populações menos habituadas a climas quentes. 

Em suma, os estudos mais recentes permitem concluir que a exposição a temperaturas elevadas afeta a reprodução humana quer através de efeitos durante a gravidez, quer através de um possível efeito ainda antes da implantação do embrião no útero. Se a tendência para o aumento das temperaturas médias anuais se mantiver – como parece ser o caso – há uma clara necessidade de se desenvolverem estratégias para acautelar o impacto negativo destes fatores macroambientais na fertilidade e saúde reprodutiva das populações humanas. Na base de tais estratégias irá estar, seguramente, um diálogo frutífero entre cientistas, profissionais de saúde e decisores políticos. Apenas um compromisso transversal desta natureza nos colocará à altura dos grandes desafios que se avizinham.

  

* Bióloga. Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa;

# Biólogo. Investigador no Instituto Gulbenkian de Ciência e no Laboratório de Comportamentos de Saúde Ambiental (EnviHeB Lab) do Instituto de Saúde Ambiental da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.

Referências bibliográficas

Barreca A, Schaller J (2019). The impact of high ambient temperatures on delivery timing and gestational lengths. Nature Climate Change 20: 1–10.

De Rensis F, Lopez-Gatius F, García-Ispierto I, Morini G, Scaramuzzi RJ (2017). Causes of declining fertility in dairy cows during the warm season. Theriogenology 91: 145–153.

Intergovernmental Panel on Climate Change [IPCC] (2015). Climate Change 2014 – Synthesis Report Summary for Policymakers. 1–32.

Mastrucci A, Byers E, Pachauri S, Rao ND (2019). Improving the SDG energy poverty targets: Residential cooling needs in the Global South. Energy & Buildings 186: 405–415.

United Nations [UN] (2017) World Fertility Report 2015 – Highlights. Department of Economic and Social Affairs Population Division.

Vollset SE, Goren E, Yuan C-W, Cao J, Smith AE, Hsiao T, Bisignano C, Azhar GS, Castro E, Chalek J, et al. (2020). Fertility, mortality, migration, and population scenarios for 195 countries and territories from 2017 to 2100: a forecasting analysis for the Global Burden of Disease Study. Lancet. (in press).


CAPÍTULO 6

O CONTRIBUTO DOS SISTEMAS DE INFORMAÇÃO GEOGRÁFICA NO COMBATE ÀS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS E NOS DESAFIOS SOCIAIS EMERGENTES

LILIANE MORAIS*

Com o reconhecimento da emergência climática, o debate na comunidade científica já não é se estamos perante alterações climáticas, mas antes de que forma podemos mitigar e adaptarmo-nos aos seus efeitos. É possível identificar, nas alterações climáticas, o princípio da dualidade: como «a maior ameaça à saúde global do século  xxi» e, simultaneamente, «a maior oportunidade de saúde global» (Wang & Horton, 2015). Esta dupla perspectiva evidencia que o problema das alterações climáticas, apesar de complexo e com múltiplas consequências, posiciona-se além dos desafios ambiental, económico e tecnológico, mas também como uma questão essencial de saúde pública.

Face às alterações climáticas, alguns tipos de eventos extremos, como as ondas de calor, são considerados riscos climáticos relevantes, do ponto de vista de saúde pública, além de serem causas importantes, mas nem por isso negligenciáveis, de mortalidade em todo o mundo, particularmente no sul da Europa. As projecções de vários estudos apontam no mesmo sentido: progressivamente, as ondas de calor aumentarão em frequência, intensidade, duração e extensão espacial. Nas últimas décadas, o sul da Europa já vivenciou muitas ondas de calor, mas também um aumento significativo do número de noites tropicais (≥20ºC) e dias extremamente quentes (≥35ºC), especialmente na Península Ibérica. Os custos, em termos económicos e para a saúde pública, têm sido motivo crescente de preocupação e têm atraído a atenção de várias autoridades e instituições, internacionais e nacionais, no sentido de se implementarem medidas de saúde pública que protejam os cidadãos. 

O risco de calor e seus efeitos na saúde não estão associados unicamente ao risco de calor em si mesmo, mas também à exposição, vulnerabilidade e capacidade de adaptação das populações. Vários estudos epidemiológicos concluíram que: 1) um dos grupos mais vulneráveis às ondas de calor são os idosos (≥65 anos) – o envelhecimento está associado a menor capacidade fisiológica de o corpo regular a sua temperatura – e as pessoas com doenças pré-existentes, especialmente as cardiovasculares e respiratórias; 2) estão maioritariamente associados a um baixo nível socioeconómico, nomeadamente uma baixa escolaridade; 3) a população urbana é particularmente vulnerável, devido à ocorrência da ilha de calor urbana (ICU), significando que a temperatura é mais elevada nas áreas urbanas do que nas áreas circundantes, como resultado da intervenção antrópica (por exemplo, elevada densidade urbana e escassos espaços verdes), o que agrava as consequências das ondas de calor. 

Portugal possui antecedentes bem fundamentados de morbilidade e mortalidade associados ao calor. A onda de calor de 2003, por exemplo, causou 1953 mortes em excesso, cujo maior aumento absoluto no número de mortes ocorreu no grupo de doenças dos aparelhos circulatórios (758) e respiratórios (255). O excesso global estimado de internamentos foi de 2576. Apesar de Portugal já possuir experiência e um sistema de vigilância e alerta de ondas de calor (inclusive alvo de aperfeiçoamento), o sistema ÍCARO, é necessário implementar medidas públicas adicionais para prevenir a morbilidade e mortalidade associada a estes eventos.

Existe um entendimento crescente de que o risco associado ao calor também é espacialmente variável nas cidades. Esta variabilidade intra-urbana deve-se a diferenças significativas entre os bairros quanto ao ambiente térmico (microclimas), o qual está relacionado com o layout físico e as características urbanas de cada bairro (por exemplo, a altura dos edifícios e a densidade de construção), a cobertura de espaços verdes e de árvores de arruamento. Os sistemas ambientais urbanos possuem, portanto, uma organização complexa, cuja cartografia das áreas de maior risco/vulnerabilidade da mortalidade relacionada com o calor se apresenta como um verdadeiro desafio, onde se encontram associadas e interconectadas variáveis fisiológicas, condições socioeconómicas e ecológicas, relativas à localização espacial. Embora o conhecimento sobre a mortalidade relacionada com o calor seja amplo, vários desafios metodológicos ainda necessitam de ser superados.

A maioria dos estudos baseiam-se em análises de dados espaciais agregados à escala regional (nível metropolitano) ou local (todo o concelho, quanto muito por freguesias). Há, pois, uma carência de estudos espaciais à escala do bairro, de forma a alocar recursos mais eficientes e realizar um planeamento pró-activo de adaptação, especificamente direccionado para os bairros de maior vulnerabilidade. Os actuais avanços na ciência da computação permitem respostas mais eficazes para os desafios sociais emergentes. As melhorias nos Sistemas de Informação Geográfica, particularmente na geocodificação (conversão de endereços em coordenadas geográficas), têm permitido uma abordagem inovadora: associar locais de residência ou a escala do bairro a vários indicadores de saúde. Esta escala de análise tornou-se uma tendência crescente em vários sectores da vigilância em saúde pública, como a epidemiologia espacial e a geomedicina. Acrescem as diversas análises espaciais que ajudam na identificação do padrão espacial à escala intra-urbana da mortalidade associada ao calor. 

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As duas figuras ilustram o processo de geocodificação. (Fonte: Esri)

 Estas informações são essenciais para direcionar espacialmente medidas de intervenção em benefício dos cidadãos e melhorar a saúde pública. Fornece contribuições significativas para o apoio à tomada de decisão, bem como para os geógrafos e urbanistas que desenvolvem estratégias urbanas para reduzir a mortalidade relacionada ao calor, promovendo a equidade da saúde climática nas cidades. Na verdade, saber quais os bairros onde é mais urgente alocar recursos, fortemente ligados às necessidades de cada bairro, é uma enorme vantagem.

Muitos outros exemplos podem ser apresentados, exemplificando a crescente abordagem dos Sistemas de Informação Geográfica na epidemiologia espacial e na saúde pública. As análises geoestatísticas, espaciais e espaço-temporais têm permitido identificar detalhadamente padrões espaciais de diversas doenças, novos surtos, novas variáveis, ampliando o conhecimento. Tomemos como exemplo os seguintes estudos, seja consolidando a importância desta abordagem, seja numa componente mais prática:

  • A importância de diversas metodologias na epidemiologia espacial (Kirby et al., 2017)

  • Os impactes da inovação na epidemiologia espacial (Tatem, 2018)

  • O risco elevado de doença cardiovascular associado à proximidade de estradas movimentadas (Brugge et al., 2013)   

  • A comparação da dependência espacial do índice de massa corporal entre adultos e crianças (Joost et al., 2016)

  • A análise evolutiva das características espaço-temporais dos acidentes de trânsito na população idosa (Kang et al., 2018)

  • A compreensão das diferentes dimensões (nível socioeconómico, distância) associadas ao acesso e acessibilidade das infraestruturas de saúde, como os hospitais (Comber et al., 2011)

 

* Geógrafa. Doutoranda no Programa Doutoral EnviHealth&Co da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. lilianemorais7@hotmail.com

Nota: Utilizou-se o termo bairro para simplificar; tecnicamente, o termo correcto é secção estatística, que corresponde à área da freguesia com 300 alojamentos destinados a habitação. Fonte: INE   

Brugge, D., Lane, K., Padró-Martínez, L.T., Stewart, A., Hoesterey, K., Weiss, D., Wang, D.D., Levy, J.I., Patton, A.P., Zamore, W., Mwamburi, M., 2013. Highway proximity associated with cardiovascular disease risk: The influence of individual-level confounders and exposure misclassification. Environ. Heal. A Glob. Access Sci. Source 12, 1–12. doi: 10.1186/1476-069X-12-84

Comber, A.J., Brunsdon, C., Radburn, R., 2011. A spatial analysis of variations in health access: Linking geography, socio-economic status and access perceptions. Int. J. Health Geogr. 10, 1–11. doi: 10.1186/1476-072X-10-44

Joost, S., Duruz, S., Marques-Vidal, P., Bochud, M., Stringhini, S., Paccaud, F., Gaspoz, J.M., Theler, J.M., Chételat, J., Waeber, G., Vollenweider, P., Guessous, I., 2016. Persistent spatial clusters of high body mass index in a Swiss urban population as revealed by the 5-year geocolaus longitudinal study. BMJ Open 6. doi: 10.1136/bmjopen-2015-010145

Kang, Y., Cho, N., Son, S., 2018. Spatiotemporal characteristics of elderly population’s traffic accidents in Seoul using space-time cube and space-time kernel density estimation. PLoS One 13, 1–17. doi: 10.1371/journal.pone.0196845

Kirby, R.S., Delmelle, E., Eberth, J.M., 2017. Advances in spatial epidemiology and geographic information systems. Ann. Epidemiol. 27, 1–9. doi: 10.1016/j.annepidem.2016.12.001

Tatem, A.J., 2018. Innovation to impact in spatial epidemiology. BMC Med. 16, 209. doi: 10.1186/s12916-018-1205-5

Wang, H., Horton, R., 2015. Tackling climate change: The greatest opportunity for global health. Lancet 386, 1798–1799. doi: 10.1016/S0140-6736(15)60931-X


CAPÍTULO 5

OBESIDADE E CONTAMINANTES AMBIENTAIS: DINÂMICAS DE PODER E EFEITO «SABOTADOR»

CAROLINA RUIVINHO*

A obesidade é uma doença crónica associada a riscos elevados de outras morbilidades bem como de mortalidade. Esta doença afeta, em todo o mundo, 650 milhões de adultos entre os 18 e os 65 anos de idade. Quando o excesso de peso é severo, os indivíduos podem alcançar um grau de obesidade extremo classificado como obesidade de nível III, ainda mais associada ao aumento da probabilidade de virem a sofrer de patologias como diabetes, apneia do sono, hipertensão arterial, doenças osteoarticulares, doenças cardiovasculares, diversos tipos de cancro, depressão, entre outras patologias.

Temos visto a obesidade como um problema de saúde influenciado e incentivado socialmente pela expansão da indústria alimentar, muito em particular, de fast food, e pelo sedentarismo, cada vez mais presentes na sociedade. De facto, a alimentação desequilibrada por excessos e o sedentarismo são determinantes para o aumento dos casos de obesidade no mundo industrializado e, dizem alguns, “evoluído” em que vivemos. No entanto, será que estamos a ver todos os fatores da equação ou será que nos limitamos a olhar para aquilo que os olhos conseguem ver?

Desde a invenção do microscópio, há mais de 400 anos, que o homem passou a ver o mundo e a explorá-lo para além do visível a olho nu. Apesar disto, ao pensar a saúde humana, como aliás em muitas outras áreas do conhecimento, tendemos a ignorar aquilo que não podemos ver e, no caso da obesidade, o paradigma não é diferente. De facto, a ingestão das gorduras excessivas de uma pizza por dia não traz benefícios à saúde, mas o problema vai muito para além da pizza, passando também pelo seu processo de fabrico, os materiais onde vem embalada e, aprofundando um pouco mais a questão, os locais aparentemente inofensivos onde nos sentamos a comê-la diariamente.

Pensemos nos novos produtos químicos que são produzidos constantemente para beneficiar seres humanos ou outros seres vivos. Até aqui tudo parece uma perfeita harmonia. Porém, estima-se que pelo menos cerca de mil destas substâncias tenham propriedades desreguladoras endócrinas, ou seja, com a capacidade de alterar o nosso equilíbrio hormonal. Estes disruptores endócrinos (DE) são extremamente ubíquos e constituem um problema global de saúde pública. A exposição a esses compostos pode ocorrer em casa, na rua, pelo ar que respiramos ou pelos alimentos que ingerimos e pela água que bebemos. Vários estudos de biomonitorização humana já revelaram que praticamente 100% dos seres humanos são portadores de uma carga química exógena, o que traduz o problema dos DE como um importante assunto de debate e estudo.

Mas como ocorre então a dinâmica de poder entre a obesidade e o ambiente? Alguns destes químicos tóxicos podem ser denominados «obesogénicos», pois têm a capacidade de aumentar o ganho de peso, alterando ou reprogramando componentes principais do sistema endócrino que regulam as vias metabólicas, o balanço energético e/ou o apetite, resultando em cenários de obesidade e dificuldade de perda de peso. Deste subtipo de DE destacam-se os ftalatos, os bisfenóis e os compostos fluorados, três dos nove grupos de substâncias desreguladoras endócrinas definidas como prioritárias pela iniciativa europeia de biomonitorização humana (HBM4EU), de que o Instituto de Saúde Ambiental faz parte.

O mecanismo pelo qual os DE «obesogénicos» têm a capacidade de promover o ganho de peso ainda não é totalmente conhecido. No entanto, estudos já provaram que estes compostos são ativadores do recetor nuclear PPARγ (Peroxisome Proliferator-Activated Receptor Gamma) e agonistas de fármacos pertencentes à classe química das tiazolidinedionas (antidiabéticos) que reduzem a gliconeogénese hepática. Na presença dos DE, ocorre a estimulação de genes envolvidos na gliconeogénese o que aumenta a ocorrência da mesma e leva à reesterificação dos ácidos gordos não esterificados e consequentemente causa dois efeitos principais que promovem o aumento de peso: aumento global dos triglicerídeos e diferenciação de pré-adipócitos em adipócitos.

Os planos terapêuticos baseados em mudanças de hábitos alimentares e de atividade física, bem como os tratamentos cirúrgicos para tratamento da obesidade (cirurgias bariátricas), este último adequado para a obesidade tipo III ou para a obesidade tipo II acompanhada de outras doenças, nem sempre têm os resultados positivos que os pacientes esperam alcançar. Entre 5% e 25% dos pacientes submetidos à cirurgia bariátrica recuperam o peso perdido no período pós-operatório, podendo atingir valores semelhantes aos que tinham no período pré-operatório. Alguns mecanismos (por exemplo, metabólicos, endócrinos, comportamentais) potencialmente associados à falha da cirurgia bariátrica já foram identificados. No entanto, outros fatores, como a exposição a DE no pré- e pós-operatório, podem dificultar a perda de peso pós-intervenção; ainda assim, não são geralmente tidos em conta na avaliação da eficácia destes tratamentos.

Olhar para a obesidade como um problema, não só genético, fisiológico, comportamental ou social, mas também como um problema ambiental (e atenção ao «também», por oposição ao «apenas») , poderá assim ser o rumo a seguir para  uma eventual melhoria das guidelines de intervenção, tendo em conta os vários fatores que contribuem para o sucesso dos tratamentos focados na mudança comportamental (nomeadamente, na mudança de comportamentos que resultem em menor exposição diária a DE). Sucesso este necessariamente alicerçado pela promoção de literacia e legislação também ela promotora de um ambiente menos obesogénico: com redução de oferta alimentar patogénica, com promoção de atividade física não estruturada e com prevenção de contaminação de substâncias com efeito de disrupção endócrina. 

Numa altura de desconfinamento, mas ainda em contexto de pandemia da COVID-19, em que o «invisível» nos fez mudar radicalmente a rotina, é o tempo ideal para repensar a nossa relação com este micromundo, que nos influencia desde sempre, mas cada vez mais e de forma mais ou menos direta, pela mão do próprio Homem. Devemos também reavaliar o seu estudo e entender que o ambiente que nos rodeia nos modifica, tal como nós o modificamos para nossa comodidade. A saúde humana não deve ser estudada isoladamente como se o ambiente não fizesse parte de nós.

*Bióloga. Investigadora do Laboratório de Comportamentos de Saúde Ambiental do Instituto de Saúde Ambiental da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.


CAPÍTULO 4

ADMIRÁVEL MUNDO VERDE

ANA VIRGOLINO*

A crise ambiental que atravessamos nas últimas décadas é inegável. Mas é inegável também que cada vez mais pessoas se interessam pela proteção do ambiente. Para algumas, este interesse até parece adquirir contornos que tocam os da psicopatologia. Reflexo disso foi o diálogo que se iniciou, há pouco mais de uma década, em torno do conceito de ecorexia, uma desordem que, não estando ainda catalogada de acordo com critérios definidos de diagnóstico, descreve atitudes e comportamentos exacerbadamente orientados para a conservação do planeta, atingindo níveis elevados de desconforto psicológico, para o próprio ou para outros que lhe são importantes.

Todavia, até que ponto andaremos nós eco-obcecados com este admirável mundo que nos rodeia, com múltiplas camadas ambientais (naturais, urbanas, digitais, sociais, económicas, entre outras)? Sabemos hoje que o contacto, mesmo que breve, com o verde (ou com o azul) tem benefícios comprovados a vários níveis (por exemplo, em termos de saúde física, psicológica, social). Os primeiros estudos que surgiram nesta área, ainda na década de 80 do século passado, mostraram que, depois de uma cirurgia, doentes que estivessem num quarto com vista para um espaço com árvores recuperavam mais rapidamente do que aqueles que estivessem num quarto com vista para uma parede de cimento. E que prisioneiros que estivessem confinados num espaço em que pudessem ver a natureza desenvolviam menos problemas psicológicos do que os outros.

Nos últimos anos, porém, o avanço tecnológico permitiu ir mais longe. Têm-se multiplicado os estudos que comprovam o impacto positivo do chamado «exercício verde» (por exemplo, caminhadas ou uso da bicicleta em ambiente natural) no bem-estar geral dos seus praticantes, através da redução dos níveis de stress, fadiga mental e depressão, da melhoria das redes sociais ou do aumento da autoestima. De facto, o ambiente natural é visto como mais atrativo que os ambientes construídos, funcionando ele próprio como incentivo para a prática de atividade física.

Existe, pois, um triângulo indissociável pessoa-saúde-ambiente, com influências mútuas entre as várias partes. Mas o que é que influencia o quê? Associando a metáfora do condutor e do elefante, de Jonathan Haidt, a esta tríade, percebemos que a decisão para a realização de um determinado comportamento – pelo condutor, na metáfora – depende da vontade (entenda-se, motivação) do elefante para executar esse comportamento. Se praticarmos atividade física de forma regular, teremos potencialmente uma melhor saúde e se cedermos ao sedentarismo podemos condenar-nos a uma vida com doenças crónicas. Contudo, praticarmos atividade física de forma regular é também determinado, em muito, pelo tipo de contexto (mais ou menos promotor do comportamento desejado pelo condutor – aqui representado pelo caminho). O ambiente em que vivemos (também determinado pelas nossas escolhas e ações) influencia, por sua vez, o nosso estado de saúde, que é o nosso recurso principal. Assim, ao contribuirmos para a poluição do ambiente, criamos contextos que aumentam o risco de doença. Ademais, ao adotarmos comportamentos amigos do ambiente (por exemplo, andarmos mais a pé e menos de carro), contribuímos para contextos mais saudáveis.

Percebemos, então, que a exposição a ambientes naturais tende a potenciar atitudes e comportamentos mais amigos do ambiente, o que por sua vez se traduz em benefícios em termos de saúde. Mas até que ponto esta realidade se alterou neste período de pandemia? A verdade é que se têm multiplicado as notícias animadoras sobre os ganhos ambientais no seguimento do confinamento da população a nível mundial. Por um lado, os dados mostram que, com a queda acentuada da emissão de poluentes para a atmosfera, os níveis de poluição do ar e da água (refira-se, a título de exemplo, o caso dos canais de Veneza, cuja água se tornou mais límpida) diminuíram nas grandes metrópoles. Com isto, inevitavelmente, conseguem-se também melhorias ao nível da saúde cardiopulmonar. Por outro lado, com a maioria da população em casa, há relatos de «visitas» da vida selvagem aos centros urbanos, outrora cheios de carros e de pessoas na sua lufa-lufa diária.

Se os dados objetivos mostram um cenário que nos dá algum alento, como será que este período tem sido percecionado pelas pessoas em termos de impacto no ambiente? Dados preliminares de um inquérito recente, realizado pelo Instituto de Saúde Ambiental, com uma amostra de base nacional com mais de 1800 pessoas, mostram que 75% dos respondentes considera que a qualidade do ar fora de casa melhorou, por comparação com o período antes da pandemia. A perceção é ainda mais positiva em relação à melhoria do ruído do trânsito ou simplesmente do ruído na rua, de uma forma geral. Embora de forma menos expressiva, 65% das pessoas considera que os cheiros (nas ruas e em outros espaços públicos) também melhoraram e 57% afirmam ainda que os aspetos visuais (luminosidade, cor do céu, ruas, etc.) foram beneficiados com o confinamento social.

Resta agora saber se estas (re)conquistas de proximidade à natureza se irão traduzir em alteração de comportamentos mais protetores da saúde individual e, em sinergia, da saúde planetária.

 

*Psicóloga clínica e da saúde. Investigadora do Laboratório de Comportamentos de Saúde Ambiental do Instituto de Saúde Ambiental da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.


CAPÍTULO 3

COVID-19 E POLUIÇÃO AMBIENTAL

FRANCISCO ANTUNES*

Para controlar a propagação da COVID-19 é necessário conhecerem-se os factores que interferem na sua transmissão. Tem sido demonstrado que o contacto inter-humano aumenta o risco de transmissão e a própria mobilidade populacional tem um efeito significativo na epidemia por COVID-19. Os poluentes do ar são factores de risco para as infecções respiratórias, ao transportarem microrganismo, com potencial patogénico para o homem e ao comprometerem os mecanismos de defesa do hospedeiro, tornando-o, assim, mais susceptível aos agentes patogénicos. Por outro lado, sabe-se que a COVID-19 é uma doença respiratória e, o seu agente, SARS-CoV-2, pode manter-se viável durante horas em aerossóis, pelo que se tem dado cada vez mais atenção aos efeitos da poluição do ar, na infecção por este novo coronavírus. 

O fornecimento de água potável e as condições de saneamento e de higiene são essenciais para a protecção da saúde das populações, no decurso de todas as epidemias, incluindo a COVID-19. Tendo em consideração que SARS-CoV-2 pode ser eliminado pelas fezes dos infectados (sintomáticos e assintomáticos), não se pode excluir que a via fecal possa ter, também, implicações na transmissão.

A pneumonia causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2), designada por COVID-19, tornou-se um dos mais graves problemas de saúde pública. A transmissão de SARS-CoV-2 é muito rápida, por gotículas respiratórias, pelo contacto (com objectos e superfícies contaminadas) e, eventualmente, por via aérea. Com excepção da Antártida, todos os outros continentes foram afectados, com um número total de casos confirmados, até ao momento, próximo dos 3 milhões, com mais de 200 mil mortes.

Em número de casos confirmados, os Estados Unidos da América (800 926, cerca de metade dos casos), a Espanha (208 389), a Itália (187 327), a Alemanha (148 046), o Reino Unido (133 499), a França (117 961), o Irão (85 996) e a China (84 302) representam mais de ⅔ dos casos registados em todo o Mundo (Organização Mundial de Saúde, 23 de Abril de 2020). Quanto à mortalidade, os Estados Unidos da América (40 073), a Itália (25 085), a Espanha (21.717) e o Reino Unido (18 100) apresentam mais de metade das mortes (Organização Mundial de Saúde, 23 de Abril de 2020). Devido à elevada variabilidade de decisões políticas e sanitárias dos diferentes países, os dados, a propósito da incidência, letalidade e mortalidade, são, notoriamente, diferentes entre países e, mesmo, entre regiões do mesmo país.

Com milhões de infectados, a maioria com sintomas ligeiros ou mesmo assintomáticos, é o momento de se começar a avaliar quais as razões das divergências encontradas, quanto à incidência e à mortalidade, para além das diferenças dos métodos utilizados para reportarem o número de infectados, de mortes e das respectivas desigualdades em relação aos diferentes grupos etários, em particular naqueles países com uma percentagem apreciável de população envelhecida, com mais de 60 anos de idade, em que o risco de desenvolver doença grave por COVID-19 é, substancialmente, superior do que para os grupos etários mais jovens.

Para controlo da propagação da COVID-19, vários estudos têm explorado alguns factores, em particular ambientais, que possam interferir com a transmissão de SARS-CoV-2, para além do contacto inter-humano e da mobilidade populacional.

Os poluentes ambientais são considerados factores de risco para as doenças respiratórias, por transportarem microrganismos patogénicos, podendo, também, afectar a imunidade do hospedeiro. Dado que a COVID-19 é, fundamentalmente, uma doença respiratória, e SARS-CoV-2 pode permanecer viável em aerossóis durante algumas horas, alguns estudos têm demonstrado a relação entre as concentrações de monóxido de carbono (CO), de dióxido de azoto (NO2), de ozono (O3) e de partículas em suspensão (PM10), e o risco acrescido de infecção por SARS-CoV-2. Segundo o mais recente relatório, sobre a qualidade do ar na Europa, publicado em 2019 pela Agência Europeia do Ambiente, Itália apresenta valores de poluição atmosférica preocupantes, em particular na região Norte, dado o clima e as condições geográficas, com estagnação no ar dos poluentes. Talvez isto explique, em parte, a diferença de mortalidade, por COVID-19, entre a Lombardia e a Emília Romagna, de 12%, com o resto de Itália, de cerca de 4,5%.

Alguns outros estudos têm vindo a concentrar-se, exclusivamente, na detecção de SARS-CoV-2 em partículas em suspensão (PM10 e PM2,5), não apenas na Itália, mas também nos Estados Unidos da América. Neste último caso, um estudo preliminar desenvolvido por investigadores da Harvard T. H. Chan Shool of Public Health sugere que ao aumento de, apenas, 1 µg/m3 de partículas atmosféricas finas (PM2,5) está associado o aumento em 15% da mortalidade por COVID-19. De facto, conhecem-se outros vírus em que a poluição atmosférica por estas partículas inaláveis teve um efeito significativo na propagação da infecção, como no caso do vírus da gripe aviária.

A poluição interfere com a primeira linha de defesa das vias aéreas superiores, nomeadamente os cílios, que movem para o exterior o muco, as partículas e os agentes patogénicos, pelo que aqueles que vivem com níveis elevados de poluição têm maior predisposição para infecções crónicas respiratórias. Tal pode explicar a maior incidência e mortalidade associadas a SARS-CoV-2, em algumas regiões, de níveis elevados de poluição, em particular quando a população de idosos é alta, como acontece no Norte de Itália. Tal não põe em causa outros factores, como, por exemplo, os sistemas de saúde terem ou não a capacidade de darem resposta às necessidades dos doentes com COVID-19.

Recentemente, comprovou-se, por PCR, a presença de SARS-CoV-2 nas fezes de doentes com COVID-19, mas tal não confirma que haja risco de transmissão por este meio, mas, também, não o exclui. O risco potencial da circulação de SARS-CoV-2, no homem, durante os próximos anos e a sua disseminação no ambiente (águas residuais e lamas de depuração) levanta a questão da sua capacidade de transferência deste compartimento para um ser vivo, da sua proliferação, mutação e transmissão. Sabe-se que os coronavírus sobrevivem durante pouco tempo fora das células, mas este cenário não pode ser excluído para a adopção de outras medidas, para além daquelas implementadas para o controlo da propagação de SARS-CoV-2 pelo ar.

Baseados na evidência da correlação entre os poluentes atmosféricos e a morbilidade por doenças respiratórias, não haverá maior predisposição para a infecção por SARS-CoV-2 e a morte por COVID-19, nas comunidades vivendo em áreas geográficas poluídas? Os resultados da investigação sobre o efeito da poluição do ar sobre COVID-19 podem ter implicações no controlo e na prevenção desta doença.

 Quanto ao risco potencial de transmissão fecal de SARS-CoV-2, o que se sabe é, ainda, muito limitado, no entretanto, tem importância do ponto de vista de saúde pública, pelo que é necessária a monitorização deste vírus em várias matrizes da água. O conhecimento do seu potencial de transmissibilidade e da duração da sua persistência, em material fecal, é da maior relevância para as medidas de mitigação da COVID-19, a adoptar no futuro.

* Médico especialista em doenças infecciosas. Investigador e coordenador do grupo de investigação «Ambiente e Doenças Infecciosas» do Instituto de Saúde Ambiental da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Professor catedrático jubilado da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa


CAPÍTULO 2

Breve história de prós e contras dos ambientes digitais para a saúde humana

Osvaldo Santos*

Há cerca de 30 dias que vivemos num mundo em que o espaço físico se tornou subitamente muito limitado para a maioria dos indivíduos da espécie humana. Com este estreitar do espaço e estímulos ambientais físicos, os ambientes digitais aumentaram ainda mais o seu protagonismo. Se antes já captavam grande parte da nossa atenção e tempo, agora assumem uma dimensão quase omnipresente. A internet, nomeadamente através das redes sociais, das salas de reunião virtual e dos videojogos multiplayer, representam uma ponte de contacto com o mundo exterior de extraordinária importância no contexto de contenção social a que a pandemia por COVID-19 nos obriga.

Nunca o conceito de smart cities, em que a integração e utilização de informação em tempo real, se tornou tão relevante como para o presente e futuro imediatos: esta tecnologia com recurso à integração de big data tem sido indicada como de enorme relevância para o controlo do contágio fácil do novo coronavírus em países como China, Coreia do Sul, Polónia, ou na cidade-estado da República de Singapura. E a tendência para ir nesse sentido é clara: até a França (referência máxima da liberdade individual) optou recentemente por investir em tecnologia digital para facilitar o exercício detectivesco-epidemiológico de rastrear pessoas em risco de estarem infectadas com o novo coronavírus. Dificilmente estas tecnologias não ganharão ainda maior relevância no futuro, já com ou sem COVID-19. Se, por um lado, os ambientes digitais trazem maior coesão social, por outro, também encerram em si o potencial de nos alienar ou, ainda, de nos cercear de autonomia anonimizada.

O mundo digital faz parte da nossa cultura; a geração Z (isto é, os nascidos entre meados da década de 1990 e início da década de 2010) nunca conheceu o mundo sem ambientes digitais. É fácil esquecermo-nos de que este mundo virtual tem uma história muito curta, de apenas 40 anos. De facto, a internet surge na década de 80 do século passado, inicialmente em contexto militar, mas que rapidamente evoluiu como ambiente de comunicação e partilha de informação a nível global, tornando-se particularmente popular a partir dos anos 2000. Em 2003 surge o LinkedIn e, em 2004, o Facebook, duas das redes sociais mais influentes nas últimas décadas. Voltando de novo atrás, a 1982, nasce o ZX Spectrum e, com ele, o convite para que o cidadão comum descubra o mundo da programação de alto nível (com predomínio, inicial, da linguagem de programação Basic). Este microcomputador de apenas 8 bits massificou o conceito de plataforma de videojogos. As limitações de harwdare exigiam criatividade para os programadores, proliferando então a réplica de videojogos menos exigentes em termos de código informático, do tipo arcade (até então apenas disponíveis em salas de jogos digitais), como, por exemplo, o Breakout® (1976), o Pac-Man® (1980), o Frogger® (1981), ou, mais tarde, os populares Tetris® (1984) ou Super Mario® (1985), estes últimos já para consolas de jogo com mais recursos computacionais. O salto para jogos mais sofisticados, com componentes multiplayers e já em formato on-line, como por exemplo o PókemonTM (primeira série datada de 1996) ou os também populares Counter-Strike® (2000) e Minecraft® (2009), entre muitos outros blockbuster, esse salto foi dado num instante, criando-se rapidamente uma indústria que coloca actualmente em rede 2,5 mil milhões de jogadores a nível mundial (ou seja, cerca de 32% da população global) (Wijman, 2019).

Não se trata, de todo, de um simples ambiente de entretenimento; o mundo digital é cada vez mais visto como uma forma de incremento das capacidades humanas, a nível individual ou comunitário: com destaque para cenários próprios da ficção científica de até há pouco tempo, incluindo equipamentos digitais com potencial terapêutico para doenças neurológicas graves (como no caso da doença de Parkinson), ou capazes de ampliar as capacidades humanas, num movimento «cyborguiano» denominado por trans-humanismo (Huxley, 1968), ou ainda para a utilização de inteligência artificial para tomada de decisão clínica eficaz e eficiente, quer ao nível do diagnóstico quer do tratamento (potenciando, paradoxalmente, o conceito de «medicina personalizada» – ou seja, a medicina mais eficaz para cada indivíduo, «calibrada» em função das suas idiossincrasias genéticas, moleculares e fisiológicas).

A saúde ambiental dedica-se ao estudo dos efeitos, positivos ou negativos, da exposição humana (bem como da de outros animais) a diferentes tipos de ambiente e, numa perspectiva complementar, aos efeitos que o comportamento humano tem nos diferentes tipos de ambientes que habitamos. Sendo os ambientes digitais tão presentes na nossa vida, é legítima a reflexão sobre os seus efeitos tóxicos e, por outro lado, sobre os seus efeitos protectores e/ou promotores da saúde. Se, até ao final do século XX, os principais alvos de investigação sobre o impacto dos ambientes virtuais recaia sobre os seus potenciais efeitos patogénicos, desde o início do milénio que o foco de investigação se tem deslocado cada vez mais para o lado positivo da questão: como pode o digital contribuir para ganhos em saúde, a nível individual ou societal.

Pelo lado negativo, é de realçar a evidência moderadamente forte sobre a associação da exposição aos ecrãs por crianças e adolescentes com o aumento do risco para obesidade e para depressão, nestes grupos etários. Outro debate científico já com uma história longa é o do uso problemático da internet, com especial foco no potencial aditivo dos videojogos (mas também das apostas on-line e mesmo das redes sociais). A Organização Mundial de Saúde incluiu, na última edição da International Classification of Disease (ICD-11), a categoria nosológica de «gaming disorder» (incluindo-se «digital-gaming» e «vídeo-gaming»), caracterizada por uma «falta de controlo crescente ao longo de um período superior a 12 meses, em que se dá cada vez mais importância aos jogos, mesmo com consequências negativas (falta de sono, irritabilidade, exclusão de outras actividades do dia-a-dia)».

Não existir evidência forte quanto aos efeitos da exposição a ambientes digitais com outros problemas de saúde (por exemplo, ansiedade, baixa auto-estima, qualidade do sono, menor desempenho escolar, etc.) não significa que os mesmos sejam inexistentes. Por isso, importa destacar o que várias associações de medicina pediátrica têm aconselhado, à cautela (entenda-se, por prevenção): não expor crianças com menos de dois anos a qualquer tipo de ecrã; e um tempo máximo de exposição para crianças entre os dois e os seis anos de idade de 60 minutos por dia. No mesmo sentido, para crianças a partir dos seis anos é recomendado que a exposição a mundos virtuais seja a menor possível (com negociação parental não excessivamente diretiva) (Chassiakos, Radesky, Christakis, Moreno & Cross, 2016; Canadian Paediatric Society, Digital Health Task Force, 2017).

Existe assim um potencial dark side da internet (nomeadamente, das redes sociais e dos videojogos), com um largo espectro de objetos de investigação em curso. Mas existe também um bright side. Desde há muito que se conhecem efeitos positivos da exposição a videojogos, nomeadamente no que se refere a funções cognitivas e a competências emocionais (Pallavicini et al., 2018). Por exemplo, um estudo publicado em 1987 mostrou que jogar Pac-Man® está associado a um efeito positivo de tempos de reacção e de processamento cognitivo (Clark, Lanphear & Riddick, 1987); e há evidência em como jogar Tetris® tem efeitos positivos, enquanto treino de memória a curto prazo (Nouchi et al., 2013). Em 2013, a revista Nature publicou os resultados de um estudo de avaliação da efectividade de um videojogo (o NeuroRacer) que implica tarefas cognitivas em simultâneo (multitasking), em que se conclui existir um «efeito de transferência» do treino (Anguera et al., 2013), ou seja, não apenas as competências cognitivas dos jogadores melhoraram de forma a permitir melhor desempenho no próprio jogo, como também se verificou que os jogadores melhoravam o desempenho noutras actividades que envolvem as competências cognitivas de atenção e memória. Ainda mais importante: verificou-se que pessoas com idade avançada (60 a 85 anos) que jogaram o NeuroRacer uma hora por dia, três vezes por semana, durante quatro semanas, apresentaram melhores resultados em actividades que implicam multitasking do que jovens adultos (com aproximadamente 20 anos) sem este treino com o videojogo. Os efeitos benéficos do treino mantiveram-se para além de seis meses, tendo assim um potencial muito relevante para a reabilitação cognitiva.

Por fim, mas não menos importante. Há toda uma literatura que favorece a «prescrição» de videojogos para a promoção de comportamentos saudáveis, como, por exemplo, a promoção de comportamentos alimentares adequados e de actividade física regular. O conceito de serious games tem sido utilizado para designar toda uma variedade de tipos de jogos que promovem ganhos de literacia em saúde (mas não só), bem como a promoção de comportamentos funcionais e adaptativos. Os exergames são um bom exemplo de serious games que associam o lúdico (e, portanto, motivação autónoma e continuada) a maior gasto energético. No caso do Pokémon GoTM, a actividade física é ainda associada a actividades culturais e de construção de redes sociais não virtuais (Cartlidge, 2017).

Como nas diferentes áreas de exposição humana a agentes externos, o desafio principal do conhecimento nesta área parece ser o de determinar a dose certa da exposição. Mais complicado ainda, importa saber-se muito mais sobre qual a dose certa de exposição aos diferentes ambientes digitais, em diferentes momentos do ciclo de vida: na infância, adolescência, vida adulta, e em idades mais avançadas. Há um longo caminho a percorrer para sabermos mais sobre este assunto; um caminho de investigação que também se fará de forma mais célere graças aos próprios ambientes digitais que estão ao nosso serviço.

 

*Psicólogo clínico e da saúde. Investigador e coordenador do Laboratório de Comportamentos de Saúde Ambiental do Instituto de Saúde Ambiental da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.

Referências

  • Canadian Paediatric Society, Digital Health Task Force. (2017). Screen time and young children: Promoting health and development in a digital world. Ottawa, Ontario. 

  • Chassiakos, Y. L. R., Radesky, J., Christakis, D., Moreno, M. A., & Cross, C. (2016). Children and adolescents and digital media. Pediatrics, 138(5), e20162593. 

  • Huxley, J. (1968). Transhumanism. Journal of Humanistic Psychology, 8(1), 73-76.

  • Wijman T. The Global Games Market Will Generate $152.1 Billion in 2019 as the U.S. Overtakes China as the Biggest Market. Accessed on 13-04-2019 from: https://newzoo.com/insights/articles/the-global-games-market-will-generate-152-1-billion-in-2019-as-the-u-s-overtakes-china-as-the-biggest-market/

  • Cartlidge N (2017). Pokémon Go™, Increasing Social, Cultural and Physical Activity in Public Spaces: An Analysis of Cultural Change through Technological Innovation. Paper Presented at the 2017 National Sustainability in Business Conference. Brisbane.


CAPÍTULO 1

Saúde ambiental, ou «No man is an Island entire of itself» 

Ricardo R. Santos*


O mundo escandalizou-se com a notícia. Cada célula de um chimpanzé continha 48 cromossomas. Mais um par do que a dos humanos. Como era possível? O mundo voltou a escandalizar-se. A descodificação do genoma humano mostrou-nos que uma grande parte do nosso DNA não tinha, aparentemente, qualquer funcionalidade. Foi até designado de junk DNA. Como era possível? A verdade é que tardou o reconhecimento do óbvio: a vida é um «jogo dos possíveis» do qual ainda desconhecemos uma boa parte das regras. E, ao contrário do que suspeitávamos, nem tudo é determinado pela combinação única de material genético proporcionada pelo fenómeno da fertilização.

Foi, aliás, uma ideia que prevaleceu por muito tempo. A do determinismo genético (que recupera uma ideia do século xvii, a da pré-formação, segundo a qual todos os organismos estavam já previamente formados e inseridos nas células germinativas; para uns, no oócito, para outros, no espermatozóide). A de que tudo estava previamente determinado por uma sequência de três nucleótidos que codificavam aminoácidos e, por sua vez, proteínas. A de que éramos todos «escravos» do «egoísmo» dos genes que nos usavam do mesmo modo como os vírus usam as nossas células, ou seja, como meras «máquinas replicadoras». E quanto ao ambiente? Esse era apenas entendido como um pano de fundo. Que tinha o mero papel de seleccionar aquilo que se lhe apresentava já desenvolvido. A bem dizer, da mesmíssima forma como selecciona hoje um qualquer exame escrito, em que o que conta é a tinta da caneta no papel. Ou se passa ou se chumba. Ou se vive ou se morre. In grosso modo, a ideia era mais ou menos esta.

Entanto, eis que entra em cena o conceito de «Saúde Ambiental». À partida, um conceito que a própria Medicina estranhou. Saúde & Ambiente num locus onde se tratam Doenças? Onde se ensina a tratar Doenças? Demorou a entranhar. Nos anos 70, as provas científicas forçaram o olhar compreensivo sobre o impacto do ambiente na saúde humana, nomeadamente, pela exposição a factores químicos, físicos e biológicos, presentes no solo, no ar ou na água. Hoje, sabemos que o Ambiente, ou melhor, os múltiplos ambientes a que estamos expostos são, tantas vezes, bem mais determinantes do que a informação genética que herdámos dos nossos pais. Um bom exemplo disto relaciona-se com o risco «regional» para determinadas doenças. Vejamos.

Há doenças que são mais prevalentes nas sociedades ocidentais. Ora, o que se verificou com a migração de pessoas oriundas de países asiáticos para os Estados Unidos da América, por exemplo, é que essas pessoas passaram a ter os mesmos factores de risco e a padecer das mesmas doenças que a população americana. Porquê? Não porque o seu material genético se tivesse alterado durante o processo migratório (a não ser que, conspire-se, a US Customs and Border Protection tivesse colocado no avião, secretamente, um dispositivo de emissão de radiação especificamente desenvolvido para a conversão genética de estrangeiros em cidadãos americanos!), mas sim porque se mudaram para um novo ambiente (não apenas físico, mas também cultural e social) que determinou a adopção de um novo estilo de vida, com novos hábitos alimentares, novas rotinas de trabalho, a respiração de um ar com uma composição diferente, etc.

Vejamos ainda o caso mais paradigmático onde o ambiente desempenha um papel crucial: o cancro. Todos os cancros são genéticos, mas poucos são hereditários. Parece frase de início de aula de biologia do cancro, mas o que significa isto? Bom, significa que todos os cancros resultam de alterações genéticas, mas que uma grande parte dessas alterações, por não afectarem as células germinativas, não são transmitidas à descendência. Simples! Aliás, estima-se que apenas 5% dos cancros sejam hereditários. Então, e os outros 95%? Por que razão surgem? É, pois, aqui que entram em jogo os factores cancerígenos externos, ou seja, o ambiente (exposição a radiações, substâncias químicas, agentes biológicos, vírus, etc.), mas também os comportamentos (hábitos tabágicos, alimentares, entre outros). Ademais, de todos os cancros, os mais prevalentes são justamente os carcinomas que ocorrem na pele e nas mucosas de revestimento, tanto em humanos como nos outros animais (por exemplo, no caso dos gatos domésticos, quando expostos passivamente ao fumo do tabaco, observa-se um aumentam do risco de desenvolverem carcinomas orais), ou seja, em estruturas de contacto com o ambiente externo ao organismo. Talvez agora se compreenda melhor a razão pela qual Manuel Sobrinho Simões insiste que, em matéria de cancro, o principal desafio que temos pela frente não é nem técnico nem científico, mas sim cultural e, sobretudo, civilizacional.

O que é, afinal, «Saúde Ambiental»? O Instituto de Saúde Ambiental da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa tem vindo a desenvolver um conceito integrador dos vários ambientes (químico, físico, biológico, psicossocial, cultural, comportamental, digital) e da forma como esses ambientes podem ter um efeito patogénico ou salutogénico sobre um determinado organismo. E vice-versa, ou seja, como também nós temos um efeito patogénico ou salutogénico sobre os ambientes. Dito de outro modo, o nosso bem-estar, a nossa qualidade de vida, é uma função complexa e dinâmica de um conjunto de determinantes genéticos, ambientais e comportamentais que interagem entre si e, em conjunto, definem um determinado estado de saúde, tantos dos organismos como do planeta como um todo. Na prática, como veremos nos próximos capítulos, tal traduz-se em investigação em diferentes linhas (doenças infecciosas, doenças não-transmissíveis, ecogenética, entre outras), na identificação, avaliação e comunicação de riscos, no estudo de avaliação de impactos na saúde, no desenvolvimento de programas de promoção de comportamentos salutogénicos ou na identificação de mecanismos activadores da mudança comportamental.

* Biólogo. Investigador do Instituto de Saúde Ambiental da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. ricardoreis@medicina.ulisboa.pt

 

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 Fig.1 – Estrutura de I&D do Instituto de Saúde Ambiental da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.

 
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